Coisas muito esquisitas da língua grega moderna que só fazem sentido em grego

Às vezes me perguntam aqui no Brasil, se o idioma grego é tão complicado quanto parece. Minha resposta é sempre a mesma: “é diferente”. E essa diferença é o que mais confunde e, ao mesmo tempo, encanta quem tenta aprender. A língua grega moderna tem suas próprias regras, desvios e particularidades. Algumas fazem total sentido para quem cresceu ouvindo e falando, mas podem parecer um quebra-cabeça para quem está começando.

A verdade é que o grego mudou bastante ao longo dos séculos, mas carrega muitas heranças do passado. Mesmo com tanta história, continua sendo uma língua viva, cheia de detalhes únicos.

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Língua grega moderna: três gêneros, quatro casos, e muitos finais

Uma das primeiras coisas que assustam quem começa a estudar grego é a forma como as palavras mudam. Em português, por exemplo, sabemos que um substantivo pode ser masculino ou feminino. No grego, há três gêneros: masculino, feminino e neutro. E isso afeta como as palavras se comportam em uma frase.

Por exemplo:

  • masculino: ο άντρας (o homem)
  • feminino: η γυναίκα (a mulher)
  • neutro: το παιδί (a criança)

Além disso, os substantivos, adjetivos e pronomes mudam de forma de acordo com a função que têm na frase. Isso se chama declinação. Em vez de usar muitas preposições como fazemos no português, o grego muda o final da palavra. Existem quatro casos gramaticais que mostram se a palavra é o sujeito da frase, o objeto direto, o dono de algo ou está sendo chamada (sim, existe um caso só para chamar alguém, o vocativo).

Por exemplo:

  • Sujeito (quem faz a ação):
    • Ο φίλος διαβάζει → O amigo lê.
  • Objeto direto (quem recebe a ação):
    • Βλέπω τον φίλο → Eu vejo o amigo.
  • Posse (dono de algo):
    • Το βιβλίο του φίλου → O livro do amigo.
  • Vocativo (chamada direta):
    • Φίλε! Έλα εδώ! → Amigo! Venha aqui!

Essa estrutura permite mais liberdade na ordem das palavras. É comum ouvir uma frase com o verbo no começo, o objeto no meio e o sujeito no fim. Para quem fala português ou inglês, isso soa estranho, mas em grego continua fazendo sentido porque os finais das palavras mostram quem está fazendo o quê.

Um verbo, dois troncos

Os verbos em grego moderno têm uma lógica bem diferente da do português. Em vez de mudar só a terminação, como fazemos em português (escrever, escrevi, escrevendo), no grego o verbo muda a raiz, dependendo do tipo de ação.

Cada verbo tem dois troncos principais:

  • Um para ações contínuas – algo que está acontecendo, repetido ou habitual.
  • Outro para ações completas – algo que já foi feito e terminou.

Esses dois troncos funcionam quase como dois verbos diferentes, mesmo que sejam do mesmo verbo.

Exemplo:

Vamos usar o verbo “escrever”.

  • Se eu digo “γράφω” (grafo), quer dizer “estou escrevendo” ou “escrevo com frequência”. A ação está em andamento ou é habitual.
  • Se eu digo “έγραψα” (egrapsa), quer dizer “eu escrevi”. A ação já acabou.

Ou seja, em vez de mudar só a terminação, como no português (escrevo → escrevi), no grego muda também a base da palavra: graf- → egraps-

Cadê o infinitivo?

Uma coisa que confunde muita gente que começa a aprender grego moderno é que não existe mais o infinitivo. Sabe aquela forma do verbo em português que termina em -ar, -er, -ir? Como fazer, comer, sair? No grego moderno, isso sumiu! Em vez disso, usamos a partícula “να” (que soa como “ná”) junto com o verbo conjugado.

Por exemplo:

Em português, dizemos: “Quero sair.”

No grego moderno, dizemos algo que literalmente seria: “Quero que eu saia.” Ou seja: “θέλω να βγω” (thélo na vgó)

  • “thélo” = quero
  • “na” = partícula que substitui o infinitivo
  •  “vgó” = eu saia (forma conjugada do verbo “sair”)

Então, o que no português é um verbo no infinitivo, no grego vira uma estrutura com: “να” e o verbo já conjugado. Parece estranho no começo, especialmente para quem vem do português, espanhol ou italiano, onde o infinitivo é super comum. Mas para nós gregos, essa estrutura é totalmente natural.

Aliás, isso não é só do grego. Outros idiomas da região dos Bálcãs, como o búlgaro e o albanês, também perderam o infinitivo com o tempo. É uma mudança que veio com séculos de contato entre os povos da região.

Palavras curtas que grudam

No grego moderno, usamos muito clíticos, que são pronomes curtinhos que se “grudam” no verbo. Eles representam palavras como “me”, “te”, “o”, “a”, “nos”, “lhes” e por aí vai. A diferença é que, em vez de virem depois do verbo como no português, esses pronomes vêm antes do verbo. E parece que estão colados.

Por exemplo, em português, você diria: “Eu vi o carro.” Ou, usando o pronome direto: “Eu o vi.”

Porém, no grego moderno, dizemos: “Τον είδα.” (ton ída)

  • “τον” = “o” (pronome masculino, objeto direto)
  • “είδα” = “vi”

Literalmente, seria algo como: “O vi.”

O pronome “τον” vem antes do verbo, e é bem curtinho, um clítico. Esses clíticos aparecem o tempo todo no grego falado e escrito. Usamos eles para substituir objetos diretos e indiretos, e até para indicar posse. Mas o desafio é que a posição deles pode mudar dependendo do tipo de frase, como em perguntas, negações ou com certas partículas.Por isso, apesar de parecerem só “detalhes pequenos”, eles mudam bastante a forma de montar a frase e exigem bastante prática para usar direitinho.

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Uma ordem das palavras que brinca com a lógica

Como o grego tem um sistema de casos e terminações muito claro, a ordem das palavras na frase é flexível. Isso quer dizer que você pode trocar a posição do sujeito e do objeto, dependendo do que quer enfatizar. Por exemplo, se eu disser “To piano paizei to paidi”, estou dizendo “O piano é tocado pela criança”, mas colocando o foco no piano. O significado da frase continua o mesmo porque os finais das palavras mostram quem faz a ação.

Para quem aprendeu línguas como o inglês, onde a ordem é tudo, isso pode parecer caos. Mas, no grego, é uma forma de dar destaque, mudar o ritmo ou até reforçar uma ideia.

Um idioma com muita história nas costas

O grego moderno não surgiu do nada. Ele vem de uma tradição que tem mais de três mil anos. E, apesar das mudanças naturais com o tempo, ainda guarda muitos traços do grego antigo. As declinações, a estrutura verbal, e até o vocabulário mostram essa continuidade.

Isso também significa que quem fala grego hoje pode reconhecer, com certo esforço, frases escritas há séculos. É como conversar com os próprios antepassados por meio da língua.

Por fim…

Mesmo depois de tanto tempo vivendo no Brasil, quando penso em coisas que me definem como grego, a língua está no topo da lista. Ela é cheia de voltas, de exceções, de sons que só existem nela. Às vezes difícil até para nós. Mas ela carrega história, cultura, identidade.

Aprender grego pode parecer desafiador no começo. E é mesmo. Mas ao mesmo tempo, cada palavra tem um peso, um passado e uma lógica que dizem muito sobre como vemos o mundo. Não é uma língua para decifrar de uma vez só. É uma língua para conviver.

  • Grego, morou na Grécia por quase toda a sua vida e em Londres por 3 anos. Trabalhou como Bar Manager, Bartender e Barista em Londres e na Grécia. Além de ter trabalhado nas melhores cozinhas e bares de Londres e da Grécia. Participou de renomados cursos na área e compartilhou o seu conhecimento com seus alunos pela Europa. Por ser apaixonado pelo seu país, encontrou por meio da escrita uma forma de compartilhar com os brasileiros o seu conhecimento sobre viagens, história, cultura, mitologia grega e culinária geral, trazendo o melhor da Grécia para vocês.

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