Na história da Grécia Antiga, nomes como Homero, Ésquilo e Platão atravessaram séculos como símbolos de literatura e filosofia. Esparta, porém, ficou marcada por outra fama: a de ser uma sociedade voltada quase exclusivamente à guerra. Entre seus muros rígidos e seu silêncio disciplinado, dificilmente alguém esperaria encontrar um poeta. No entanto, foi justamente um homem de versos, Tirteu, quem ajudou a dar forma ao espírito militar que faria os espartanos temidos por toda a Hélade.
Hoje, Tirteu ocupa um lugar discreto nas páginas dos livros, lembrado apenas por estudiosos. Mas, no século VII a.C., suas palavras tiveram peso semelhante ao das lanças e escudos. Ele não liderou exércitos nem venceu batalhas, mas deixou um legado invisível: a moral dos guerreiros de Esparta.
Um poeta em meio à guerra
Tirteu viveu no período da Segunda Guerra da Messênia, um conflito longo e brutal entre Esparta e os messênios, que haviam sido reduzidos à condição de servos. Era uma época em que o cansaço e a desmotivação ameaçavam corroer a disciplina militar espartana. Foi nesse cenário que seus versos ganharam relevância.
Recitados em acampamentos e em treinamentos, seus poemas lembravam os jovens soldados de que lutar não era apenas uma obrigação, mas uma forma de honrar a cidade e os antepassados. O poeta exaltava o valor de morrer em combate, não como tragédia, mas como vitória sobre o esquecimento e a desonra.
Ao contrário de Homero, que narrava feitos individuais de heróis como Aquiles e Odisseu, Tirteu falava do coletivo. Sua poesia não glorificava o guerreiro isolado, mas a unidade da falange, em que cada homem dependia do outro para resistir.
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O mito de sua origem
A vida de Tirteu foi envolvida em lendas. Um dos relatos mais conhecidos, atribuído ao geógrafo Pausânias, diz que Esparta consultou o Oráculo de Delfos em busca de ajuda militar. O conselho da sacerdotisa foi que os espartanos pedissem um líder a Atenas.
Em vez de receber um general renomado, teriam recebido Tirteu, descrito como um homem manco e professor, motivo de escárnio inicial entre os espartanos. No entanto, suas palavras transformaram zombaria em respeito. Com seus poemas, ele teria renovado a coragem dos guerreiros e fortalecido a confiança de Esparta em suas batalhas.
Muitos historiadores, contudo, acreditam que Tirteu era de origem espartana. A versão ateniense pode ter sido propaganda posterior, destinada a ridicularizar a ideia de que Esparta pudesse produzir um poeta. Independentemente da verdade, a lenda reforça a imagem de um homem improvável que conquistou espaço no coração de uma sociedade pouco aberta à arte.
A mensagem que transformou uma cidade
A obra de Tirteu era como um canto moral para os espartanos.
Tirteu escrevia em dísticos elegíacos, forma poética associada a cantos fúnebres. Essa escolha não era casual: combinava com o tema central de suas obras, em que morte e honra apareciam lado a lado. Em um de seus versos preservados, ele conclama os jovens a avançarem com o escudo firme, sem recuar diante do inimigo.
Para ele, morrer cedo, em batalha, era mais digno do que chegar à velhice sem glória. A vergonha não recaía sobre o inimigo, mas sobre o soldado que fugia. Essa concepção ajudou a consolidar a disciplina rígida de Esparta, na qual o coletivo e a lealdade à pólis estavam acima de qualquer interesse pessoal.
Sua poesia não era mero entretenimento: funcionava como propaganda moral em um tempo sem livros ou jornais. Os versos circulavam de boca em boca, repetidos em rituais e treinamentos, até se tornarem parte da própria identidade espartana.
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Por que Tirteu foi esquecido?
Apesar de sua influência, pouco restou de Tirteu. Apenas fragmentos de seus poemas sobreviveram, preservados em citações de autores posteriores. Ele não deixou epopeias grandiosas como a Ilíada ou diálogos filosóficos como os de Platão. Sua obra estava ligada a um contexto específico: a guerra da Messênia e o fortalecimento do espírito espartano.
Com o passar do tempo, Esparta perdeu o protagonismo na Grécia. A hegemonia cultural foi assumida por Atenas, cujos poetas, dramaturgos e filósofos preencheram as bibliotecas e inspiraram o Renascimento europeu. Nesse processo, Tirteu acabou relegado a uma nota de rodapé.
Ainda assim, seu papel é fundamental para entender que até mesmo em uma cidade que se orgulhava de desprezar as artes, a poesia teve espaço, e foi decisiva.
Embora pouco lembrado, ele influenciou tradições posteriores. Sua visão de que morrer pela pátria era uma honra refletiu em poemas romanos, em canções medievais e até em discursos modernos. A ideia de sacrifício coletivo como valor máximo encontrou nele uma de suas primeiras expressões registradas.
Mais do que exaltar a guerra, suas palavras levantam perguntas ainda atuais: qual é o limite entre coragem e manipulação? Até que ponto a arte pode moldar comportamentos em tempos de conflito? Ao propor a morte como triunfo, Tirteu nos obriga a refletir sobre a relação entre poder, cultura e identidade.
Para brasileiros interessados na cultura grega, lembrar de Tirteu é reconhecer que a Grécia não se resume às grandes obras de Atenas. Esparta, mesmo sem teatros ou academias, também teve sua voz literária. Do mesmo modo que o Brasil valoriza poetas que moldaram a visão de seu povo, como Castro Alves e Gonçalves Dias, a Grécia teve em Tirteu alguém que transformou versos em arma coletiva.
Assim, compreender sua trajetória é também ampliar o olhar sobre como diferentes sociedades, em épocas e lugares distintos, usaram a poesia não apenas para celebrar a beleza, mas para fortalecer ideais e conduzir comunidades.