Desde que as figuras conhecidas como “Deusas das Serpentes” foram encontradas nas escavações de antigos palácios minoicos em Creta, a curiosidade em torno dessas representações só cresceu. Esses achados, datados de cerca de 1600 a.C., trouxeram à tona uma série de questões sobre a religião, o papel das mulheres e os símbolos usados por uma das civilizações mais antigas da Europa.
As primeiras interpretações, propostas no início do século XX por Sir Arthur Evans, o arqueólogo que escavou o palácio de Cnossos, tiveram grande influência. Ele sugeriu que essas figuras representavam uma poderosa deusa ligada à fertilidade e à natureza, e que a sociedade minoica teria sido centrada em cultos femininos, talvez até matriarcal. Mas o tempo e novas pesquisas trouxeram outras perspectivas.
O que a figura representa?
A imagem é marcante: uma mulher com os seios à mostra, segurando serpentes nas mãos e, em alguns casos, com um animal (como um gato selvagem) sobre a cabeça. Os detalhes chamam atenção, mas o que exatamente ela representa ainda é debatido. Alguns estudiosos acreditam que se trata de uma deusa ligada à terra, à morte e à regeneração. Outros sugerem que pode ser uma sacerdotisa em transe ou desempenhando um ritual.
Não há inscrições que indiquem diretamente quem ela é, então as interpretações se baseiam na comparação com outras representações e nas crenças conhecidas da época.
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A serpente como símbolo
A presença das serpentes é um dos elementos mais intrigantes. Ao longo da história, esse animal foi símbolo de diferentes ideias em diversas culturas: regeneração, morte, sabedoria, proteção, ligação com o submundo. Em muitas tradições, a serpente está associada à terra e às forças invisíveis da natureza. Ela se esconde no solo, muda de pele, e surge de novo, um ciclo que facilmente se liga aos temas de fertilidade e renovação.
Na religião minoica, essas associações parecem fazer sentido. A Creta minoica era uma sociedade agrícola, profundamente conectada às estações e à fertilidade da terra. A serpente, portanto, não era vista como uma ameaça, mas como um elo entre o mundo dos vivos e o espiritual.
Uma deusa, várias formas
Ariadne era uma das figuras que se associavam à deusa serpente.
As representações femininas da cultura minoica são muitas e diversas. Há figuras que aparecem no topo de montanhas, ladeadas por animais; outras seguram flores ou papoulas; algumas surgem em barcos ou entre pássaros. Esse conjunto de imagens levanta uma questão importante: estamos diante de uma única deusa com muitos aspectos ou de várias deusas com funções diferentes?
Entre os nomes associados a essa divindade está o de Ariadne, conhecida na mitologia grega como filha do rei Minos e ligada ao labirinto e ao herói Teseu. O nome “Ariadne” pode ser traduzido do grego como “a mais sagrada”, o que sugere uma possível origem religiosa anterior à lenda mitológica.
Também há conexões com outras figuras femininas importantes da mitologia posterior, como Deméter (deusa da agricultura e das estações) ou Perséfone (ligada ao mundo subterrâneo). Isso levanta a hipótese de que a mitologia grega clássica teria herdado, adaptado e renomeado divindades do período minoico.
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Um culto matriarcal?
A ideia de que a sociedade minoica era matriarcal ganhou força no início do século XX, influenciada pela descoberta de tantas figuras femininas e pela ausência, em muitos contextos religiosos, de imagens masculinas. A “Deusa das Serpentes” se tornou um símbolo dessa teoria.
No entanto, estudos mais recentes apontam para uma estrutura social mais complexa. A presença de homens em papéis de destaque, tanto na arte quanto nas construções políticas da época, sugere que a liderança e a autoridade não eram exclusivas das mulheres. A religião, sim, parece ter dado grande visibilidade às figuras femininas, mas isso não indica necessariamente uma sociedade comandada por elas.
A herança minoica na religião grega
A transição da civilização minoica para a micênica, e depois para o período clássico da Grécia, envolveu transformações profundas. Mas alguns elementos sobreviveram. Os cultos a divindades ligadas à natureza, aos ciclos agrícolas e ao submundo reaparecem com força nos mitos gregos que conhecemos hoje.
Isso indica que, mesmo com mudanças políticas e culturais, parte da espiritualidade dos minoicos foi preservada. A figura da deusa — seja como Ariadne, Deméter ou outra — continuou presente no imaginário religioso por muitos séculos.
Por que ainda falamos da Deusa das Serpentes?
Mais de 3.500 anos depois, as figuras da “Deusa das Serpentes” continuam a ser estudadas, debatidas e até reinterpretadas em contextos contemporâneos. Elas oferecem uma janela para o pensamento simbólico de uma civilização antiga e servem de ponto de partida para refletirmos sobre o papel das mulheres, a espiritualidade e a forma como lidamos com os ciclos da vida.
A pesquisa arqueológica não oferece respostas definitivas, mas ajuda a compreender que, antes dos templos de mármore e dos panteões organizados da Grécia clássica, havia um mundo riquíssimo de crenças locais, símbolos e rituais. E a figura dessa mulher com serpentes nas mãos permanece como um dos ícones mais potentes desse passado.
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