Poucos nomes femininos atravessam os séculos com a mesma força que os de filósofos como Sócrates, Platão ou Aristóteles. No entanto, entre os pensadores da Grécia Antiga, houve uma mulher que não só absorveu os ensinamentos de uma importante escola filosófica como também a liderou: Areta de Cirene. Seu nome é pouco conhecido fora dos círculos acadêmicos, mas sua atuação revela um papel raro para as mulheres da época: o de mestra, pensadora e referência intelectual.
Quem foi exatamente Areta de Cirene?
Areta de Cirene. Foto: Flickr.
Areta nasceu na cidade de Cirene, no norte da África, uma colônia grega situada na atual Líbia. A cidade era um centro cultural importante durante o período clássico, e foi ali que nasceu e se desenvolveu a chamada Escola Cirenaica, fundada por seu pai, Aristipo de Cirene, discípulo direto de Sócrates. A escola ficou conhecida por propor uma forma de hedonismo filosófico, que pregava o prazer como o bem supremo da vida, não no sentido vulgar, mas como a busca consciente por experiências agradáveis e a rejeição do sofrimento.
Aristipo educou Areta desde cedo em sua filosofia. O ambiente doméstico funcionava como espaço de formação intelectual, o que por si só já rompia com os padrões de gênero da época. As mulheres gregas raramente tinham acesso à educação formal, quanto mais à filosofia, uma atividade associada exclusivamente aos homens.
Quando Aristipo morreu, Areta assumiu a liderança da escola. A transição de comando para uma mulher era incomum, mas sua reputação já era sólida entre os discípulos. A tradição oral e registros posteriores indicam que ela deu continuidade ao trabalho do pai, ensinando os preceitos da Escola Cirenaica e influenciando novos pensadores. Um deles foi seu próprio filho, Aristipo, apelidado de “Metrodidaktos”, um termo grego que significa “ensinado por sua mãe”, título que revela o reconhecimento de sua autoridade intelectual.
Areta é apontada por autores antigos como tendo escrito cerca de 40 livros. Nenhuma dessas obras sobreviveu, o que limita o conhecimento direto sobre suas ideias. Ainda assim, a existência de tais referências indica que ela era uma autora ativa e respeitada. Os poucos fragmentos disponíveis sugerem que sua atuação não foi apenas administrativa na escola, mas profundamente ligada à transmissão do pensamento e à reflexão ética.
Leia mais: Nyx: descubra o poder misterioso dessa deusa grega e se há um pouco dela em você
O que defendia a Escola Cirenaica?
A Escola Cirenaica não via o prazer como uma indulgência irresponsável. Seus seguidores acreditavam que o prazer imediato era mais confiável que o prazer intelectual ou espiritual, mas também defendiam o uso do bom senso. Era necessário escolher bem os prazeres, evitando aqueles que pudessem causar sofrimento posterior. Esse cuidado antecipava debates que, séculos depois, seriam retomados por correntes filosóficas como o epicurismo.
A abordagem cirenaica valorizava o presente e rejeitava o sofrimento desnecessário. Emoções negativas como medo e raiva eram vistas como obstáculos à felicidade. Areta ensinava que a vida boa consistia em decisões conscientes, e que o prazer deveria ser medido e avaliado, uma espécie de cálculo ético do que valia ou não a pena experienciar.
Apesar da importância de sua atuação, ela ficou de fora da maioria dos registros oficiais da história da filosofia. Como aconteceu com tantas outras mulheres do mundo antigo, seu nome foi quase apagado da memória coletiva. A misoginia que atravessou gerações fez com que a ideia de uma filósofa fosse vista como exceção ou anomalia, não como parte integrante da produção intelectual da época.
Hoje, é lembrada por estudiosos como símbolo da resistência feminina dentro de um universo predominantemente masculino. Sua história ajuda a reequilibrar a narrativa histórica, mostrando que o pensamento filosófico da Grécia Antiga não foi construído apenas por homens.
O caso de Areta também lança luz sobre o papel social da mulher na Grécia clássica. Mesmo em um contexto onde a maioria das mulheres era relegada ao espaço doméstico, figuras como ela desafiaram as normas estabelecidas. Ao educar, liderar e produzir conhecimento, Areta ampliou os limites do possível para as mulheres de sua época.
Leia mais: O nome grego feminino que é o mais bonito do mundo, segundo a ciência
Sobre a cidade de Cirene
A cidade de Cirene, onde ela viveu, guarda até hoje ruínas significativas da civilização grega. Arqueólogos identificaram templos, fóruns, casas e escolas filosóficas entre os vestígios encontrados. A região foi considerada Patrimônio Mundial da Unesco, e estudiosos continuam pesquisando indícios de figuras como Areta, cuja importância vai além da filosofia: trata-se também de um símbolo de resistência cultural e de afirmação de voz em uma sociedade desigual.
A ausência dos escritos de Areta, embora frustrante, não apaga o impacto de sua trajetória. Filósofos como Diogenes Laërtius e outras fontes da Antiguidade reconhecem sua autoridade e papel formador. O epíteto do filho, “ensinado por sua mãe”, permanece como uma das poucas, porém eloquentes, provas do seu legado.
O pensamento hedonista da Escola Cirenaica, ao qual Areta deu continuidade, ainda suscita debates contemporâneos sobre o que é uma vida boa. A valorização do prazer equilibrado, a rejeição do sofrimento gratuito e a busca pelo bem-estar são temas que atravessam séculos e permanecem relevantes.
Em tempos em que se discute qualidade de vida, bem-estar emocional e prazer como forma legítima de viver, as ideias que Areta ajudou a preservar voltam ao centro das discussões.
Areta de Cirene foi uma das poucas mulheres a alcançar destaque em um universo restrito e excludente. Embora suas palavras tenham se perdido no tempo, seu exemplo sobrevive como referência de liderança, pensamento crítico e resistência. E sua história, aos poucos resgatada, desafia antigos silêncios e renova o entendimento sobre o papel das mulheres na formação do pensamento ocidental.
0 comentários