Entre os muitos heróis da Guerra de Troia, como Aquiles, Heitor e Ulisses, há um personagem pouco lembrado, mas que chamou atenção por seu comportamento fora do comum. Seu nome era Thersites. Ele não empunhava a espada com glória, não tinha uma beleza heroica e, diferentemente dos guerreiros reverenciados por sua honra e bravura, era visto como o oposto disso. Ainda assim, seu papel foi marcante, e hoje é comparado por muitos ao irreverente Jack Sparrow dos filmes “Piratas do Caribe”.
Um soldado fora do padrão
Thersites aparece na obra “Ilíada”, de Homero, como uma figura provocadora. Ele era considerado o soldado mais feio do exército grego, com corpo deformado, costas curvadas, pernas tortas e quase sem cabelo. Na Grécia Antiga, essa aparência física era interpretada como reflexo de um caráter duvidoso. Para os gregos e também para os romanos, a beleza corporal era sinal de virtude; a feiura, um indício de alma corrompida.
Mas o que realmente fez Thersites se destacar não foi sua aparência, e sim sua língua afiada. Em uma das cenas mais conhecidas da “Ilíada”, ele critica abertamente Agamenon, o líder supremo dos gregos na guerra. Enquanto os soldados demonstravam cansaço e queriam voltar para casa, Agamenon tentava convencê-los a continuar. Thersites, ao contrário dos outros, não teve medo de dizer em voz alta o que muitos provavelmente pensavam em silêncio.
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Ousadia perigosa
Durante a assembleia dos guerreiros, Thersites se levanta e questiona a autoridade de Agamenon, acusando-o de explorar os soldados em benefício próprio. Ele diz que Agamenon sempre fica com as melhores recompensas, como mulheres e ouro, mesmo sem lutar. Para ele, continuar a guerra só beneficiava os reis e comandantes, enquanto os soldados comuns pagavam com a própria vida.
Essas palavras foram recebidas com hostilidade. Ulisses, representante da ordem e da hierarquia, tentou silenciá-lo com violência. Chegou a ameaçá-lo com espancamento e humilhação pública. A lógica da época era simples: contestar o líder era uma ameaça à unidade do exército e à moral dos guerreiros. A proposta de Thersites, de abandonar o campo de batalha, soava como covardia num mundo onde a honra póstuma era mais valiosa que a vida.
Embora os antigos o considerassem um bufão ou até mesmo um vilão, alguns pensadores modernos o enxergam com outros olhos. Para eles, ele representa uma figura crítica, alguém que não aceita cegamente as ordens do poder. Filósofos como Hegel e Marx viram nele um símbolo da voz popular contra os abusos das elites. Já o pensador Seth Benardete afirmou que Thersites dizia o que todos pensavam, mas tinham medo de falar.
A comparação com Jack Sparrow vem justamente dessa postura. Nos filmes, o capitão pirata é um personagem que, embora não siga o caminho tradicional do herói, sobrevive com inteligência, sarcasmo e senso prático. Há uma cena em “Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas” em que Jack se recusa a participar de uma batalha entre dois lados em conflito, preferindo assistir de longe, tomando um gole de rum. A lógica dele é a mesma de Thersites: “Por que lutar em uma guerra que não é minha?”.
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Um fim trágico…
Apesar de sua língua afiada e coragem verbal, Thersites teve um fim trágico. Em uma obra perdida da Antiguidade, chamada “Etiópida”, é dito que ele foi morto por Aquiles após zombar da memória de uma guerreira inimiga que Aquiles havia acabado de matar. Essa atitude desrespeitosa custou-lhe a vida, e mais uma vez ficou claro como sua ousadia não era tolerada.
Ainda assim, sobreviveu como símbolo. Ele pode não ter vencido batalhas, nem ganhado estátuas em sua homenagem, mas sua postura questionadora permanece viva em debates sobre poder, obediência e justiça. Ele é um lembrete de que, mesmo entre heróis musculosos e corajosos, sempre houve espaço, ainda que pequeno, para vozes dissonantes.
No fundo, o “Jack Sparrow” da Guerra de Troia não queria glória nem tesouros. Queria apenas dizer o que pensava. E isso, por si só, já era um ato de coragem.
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