Brazil Greece

»

»

O estranho relógio que começa a funcionar quando a vida termina

| Em 03/09/2025 às 15:28
Entenda como funciona a datação por carbono-14. Imagem: brazilgreece.

Imagine um relógio que só começa a contar o tempo depois da morte. Parece algo saído de um filme, mas ele existe, e é real. Esse “relógio” é o carbono-14, um elemento presente na natureza que se transformou em uma ferramenta essencial para revelar segredos do passado, desde restos humanos antigos até fraudes em obras de arte.

Essa história começa com um químico americano chamado Willard Libby, que nos anos 1940 buscava comprovar a existência natural do carbono-14, uma forma radioativa do carbono. Para isso, ele teve uma ideia nada convencional: procurar vestígios no esgoto de Baltimore, nos Estados Unidos. E foi ali, em meio a resíduos humanos, que encontrou os primeiros indícios do elemento que mudaria a forma como enxergamos o tempo e a história.

Como o carbono-14 funciona?

O estranho relógio que começa a funcionar quando a vida termina

Datação por carbono-14. Imagem: brazilgreece.

O carbono-14 é gerado naturalmente quando raios cósmicos atingem átomos de nitrogênio na atmosfera da Terra. Esse carbono radioativo se combina com oxigênio e forma dióxido de carbono, que é absorvido por plantas durante a fotossíntese. Animais, inclusive nós, ao consumirmos essas plantas, incorporamos o carbono-14 ao corpo.

Enquanto o organismo está vivo, ele mantém esse nível constante de carbono-14. Mas quando morre, o processo de reposição para. A partir daí, esse carbono começa a se decompor em ritmo constante e previsível. Ou seja, a partir da quantidade restante em um corpo ou objeto orgânico, é possível saber há quanto tempo ele morreu. É como se a morte acionasse um cronômetro invisível.

Foi essa lógica que permitiu a Libby criar a técnica da datação por radiocarbono. Com ela, é possível saber a idade de materiais orgânicos com até 50 mil anos.

A aplicação do carbono-14 como marcador do tempo transformou diversas áreas da ciência. Ele foi usado para datar o linho dos Manuscritos do Mar Morto e madeiras do Antigo Egito, por exemplo. E isso é só o começo.

Com o passar das décadas, o método passou a ser usado também na arqueologia, em investigações policiais, no combate ao tráfico de marfim e até na climatologia.

Casos como o de Laura Ann O’Malley, uma menina que desapareceu nos anos 1970 nos EUA, foram solucionados graças à datação por radiocarbono. Ossos encontrados décadas depois foram analisados e revelaram datas compatíveis com o desaparecimento, o que foi confirmado com testes de DNA.

Leia mais: A lição que os espartanos nos deram sobre casamento e a paternidade

Um aliado contra crimes e fraudes

Em outro caso, a técnica ajudou a levar à prisão um dos maiores traficantes de marfim do mundo, em Togo. O carbono-14 presente nas amostras de marfim revelou que os elefantes haviam sido mortos depois da proibição internacional da prática. Combinado a testes genéticos, o método forneceu provas definitivas para a condenação.

Obras de arte também passaram a ser desmascaradas com o auxílio do “relógio da morte”. Pinturas supostamente antigas revelaram ter sido feitas no século XX. Mesmo envelhecidas artificialmente, o carbono-14 presente nos materiais denunciava a real data de produção.

Riscos à precisão do método

Apesar de sua ampla utilidade, o relógio do carbono-14 enfrenta um novo desafio: as mudanças provocadas por nós mesmos no ambiente. A queima de combustíveis fósseis, como carvão, petróleo e gás natural, libera enormes quantidades de carbono comum (sem radioatividade), diluindo o carbono-14 na atmosfera.

Essa mudança, chamada de “efeito de diluição”, pode comprometer a precisão do método no futuro. Se as emissões continuarem em ritmo acelerado, será mais difícil distinguir um material atual de outro produzido há milhares de anos.

No pior cenário, um objeto recém-fabricado poderá parecer, para o carbono-14, tão antigo quanto uma peça da antiguidade. Isso dificultaria, por exemplo, a identificação de fraudes e a reconstituição de eventos históricos.

Leia mais: Crânio encontrado na Grécia muda tudo que sabemos sobre a evolução humana

Willard Libby recebeu o Prêmio Nobel de Química em 1960 pela descoberta. De lá para cá, sua invenção tem sido uma das ferramentas mais poderosas para entendermos não só o que aconteceu, mas quando aconteceu.

Mesmo com os desafios ambientais, laboratórios ao redor do mundo seguem atualizando curvas de calibração, como as baseadas nos anéis das árvores, para manter a precisão do método.

Em um mundo em que tudo parece correr cada vez mais rápido, é curioso pensar que um dos nossos melhores marcadores do tempo depende, ironicamente, da morte. É ele quem nos ajuda a contar a vida, mesmo depois que ela acaba.

  • Rita Póvoa

    Pedagoga de formação e entusiasta da língua portuguesa, é uma apaixonada por viagens e gastronomia, encontrando na escrita uma maneira de unir suas paixões. Com habilidades técnicas refinadas na educação e um olhar atento para a língua, ela compartilha de forma prática e acessível dicas valiosas para o dia a dia.

Tags: ciência

RECENTES

Oslo, tudo que deveria fazer e aprender com os noruegueses, europeu diz

Oslo, tudo que deveria fazer e aprender com os noruegueses, europeu diz

Em janeiro visitamos a capital da Noruega, Oslo. Nossas impressões foram completamente diferentes do que esperávamos. Não há como negar, depois da experiência que adquirimos em viagens, eu diria que a maioria das grandes cidades do mundo tem muitos aspectos negativos...

Holambra, a cidade holandesa no Brasil, sob a visão de um europeu

Holambra, a cidade holandesa no Brasil, sob a visão de um europeu

Antes de vir morar no Brasil, eu não poderia imaginar que no país do café existissem cidades com influência europeia. Até que visitei Holambra, uma cidade brasileira em São Paulo conhecida como a Holanda da América Latina. Embora eu esperasse que fosse uma cópia mais...

Panificio Fiore 1508, nossa experiência na alma da Puglia em uma focaccia

Panificio Fiore 1508, nossa experiência na alma da Puglia em uma focaccia

Bari é um convite irresistível para a gastronomia do sul da Itália. Como já falamos por aqui, conhecemos Bari vindo da Grécia, a caminho da Croácia. E, depois de ancorarmos vindos de Corfu e antes de seguirmos para Dubrovnik, descobrimos que a verdadeira essência de...

O que não deixar de fazer em Maragogi? Um gringo conhece e diz

O que não deixar de fazer em Maragogi? Um gringo conhece e diz

Antes de chegar ao Brasil, eu não tinha ideia do que era o Nordeste, como quase todos os europeus que conhecem só o Rio de Janeiro, São Paulo e a floresta Amazônica. Mas, se você é casado com uma brasileira, não tem como escapar de descobrir. Por causa do nosso...

Por que viajar sozinho para a Grécia? Grego dá razões para te convencer

Por que viajar sozinho para a Grécia? Grego dá razões para te convencer

Nos últimos anos, viajar sozinho se tornou algo muito popular. Apesar disso, muitas pessoas ainda querem experimentar, mas hesitam. Não há dúvida de que viajar com companhia é muito mais fácil, mas acredite, se você tentar, certamente não se arrependerá. Como grego...

Você sabe como higienizar a sua escova de cabelo? Confira

Você sabe como higienizar a sua escova de cabelo? Confira

Cuidar do cabelo não envolve apenas bons produtos, hidratação frequente ou uma rotina bem planejada. Um detalhe simples, muitas vezes esquecido, pode fazer diferença no dia a dia: a limpeza da escova de cabelo. Assim como os pincéis de maquiagem precisam ser lavados...

Como identificar uma pessoa mal-intencionada em menos de 10 segundos

Como identificar uma pessoa mal-intencionada em menos de 10 segundos

Pode parecer precipitado tirar conclusões sobre alguém logo de cara, mas a ciência mostra que isso acontece o tempo todo, e muito rápido. De acordo com estudos da psicologia social, o cérebro humano forma impressões iniciais em menos de sete segundos. Em poucos...

0 comentários