Brazil Greece

»

»

Por que o cão de Odisseu foi o mais leal da mitologia grega? A história surpreende

| Em 30/08/2025 às 09:31
Imagem: brazilgreece.

Quando se fala em “cachorro” e mitologia grega, muita gente lembra de Cérbero, o guardião do submundo. Mas o título de mais leal pertence a outro personagem, bem mais silencioso e humano: Argos, o cão de Odisseu (Ulisses). Sua história aparece na Odisseia, poema atribuído a Homero, e virou um símbolo duradouro de fidelidade, o tipo de lealdade que não precisa de palavras.

Quem foi Argos?

Argos nasceu e cresceu em Ítaca, a ilha de Odisseu. Conforme a tradição, o herói treinou o animal desde filhote. O plano era claro: transformar o cão em parceiro de caça, ágil e resistente. Esse futuro, no entanto, foi interrompido quando Odisseu partiu para a Guerra de Troia. Foram dez anos de combate até a queda da cidade, seguidos por outra década de percalços no caminho de volta. Nessa ausência de vinte anos, Argos envelheceu — e a casa do herói, sem comando, entrou em decadência.

Ao retornar, Odisseu encontra o palácio em desordem. Pretendentes ocupavam o espaço, pressionando Penélope para um novo casamento. Com a ajuda de Atena, ele se disfarça de mendigo para avaliar o terreno e planejar seu próximo passo.

É nesse momento que acontece uma das cenas mais comoventes da literatura antiga: mesmo após duas décadas, o velho cão reconhece o dono. Sem latido, sem alarde, Argos ergue a cabeça, mexe o rabo, baixa as orelhas. Tenta levantar, mas o corpo não responde.

O herói segura as lágrimas e desvia o rosto para não ser descoberto. O encontro dura segundos, e é suficiente. O cão, tendo cumprido a última “tarefa”, ver o dono mais uma vez, morre logo após o reconhecimento.

A cena, tal como narrada no poema e relembrada em reportagens recentes, deixa claro o contraste entre aparência e verdade: nenhum disfarce engana quem conviveu de perto.

Leia mais: Este é o grego que desbravou o Ártico antes dos vikings

O que essa passagem nos conta sobre lealdade

O episódio é curto, mas cheio de sinais. Primeiro, a lealdade não depende da utilidade. Argos não caça mais, não protege a casa, não mostra vigor. Ainda assim, permanece atento. Segundo, a memória afetiva supera o disfarce: os sentidos do cão, cheiro, postura, respiração, captam o que os humanos ao redor não percebem.

Terceiro, a decadência do palácio durante a ausência de Odisseu aparece no estado do próprio animal: velho, negligenciado, deitado à beira dos portões. A narrativa usa o cão como espelho da casa.

Há, ainda, um tema moral: os servos descuidam das responsabilidades quando o senhor se afasta. A imagem é dura, mas funcional para a história. Mostra que a desordem não é apenas política (os pretendentes ocupando o espaço), é também ética (o desleixo no cotidiano). Argos resiste a tudo isso com o único recurso que lhe resta, esperar.

A permanência desse mito vai além do amor aos cães. Há um reconhecimento imediato do leitor: quem já conviveu com um animal sabe como os gestos simples dizem mais do que demonstrações teatrais. Não é coincidência que cinema e literatura contemporâneos voltem repetidas vezes à imagem do “cão fiel”. O arco de Argos antecipa esse repertório: a espera, o encontro e o adeus. É uma sequência curta, direta e, por isso mesmo, difícil de esquecer.

Outro ponto importante dessa história é a economia do texto. Homero não entrega discursos emocionados. Não há cenas longas de despedida. O que fica é um olhar, um rabo que se mexe, um herói segurando o choro para não estragar o plano. Essa contenção é o que dá força ao episódio. O leitor preenche o silêncio com a própria experiência.

Leia mais: Vale das Musas, este é o lugar onde os gregos buscavam inspiração divina

O papel de Atena e o limite do disfarce

A presença de Atena, deusa que protege Odisseu, introduz um elemento interessante: o herói está sob a melhor magia possível, mas o feitiço tem limite. A deusa pode alterar a aparência, rejuvenescer o rosto, encurvar as costas, sujar as roupas. Mesmo assim, Argos reconhece o dono.

O mito sugere que há vínculos que nenhuma máscara quebra. Em termos narrativos, é um aviso ao leitor: se o cão viu, os pretendentes cairão; o retorno do senhor é inevitável.

A cena como ferramenta de enredo

No conjunto da Odisseia, o encontro com Argos cumpre funções práticas. Ele marca a chegada de Odisseu ao coração da casa. Antecede o acerto de contas com os pretendentes. Dá ao herói um motivo íntimo para seguir em frente. Ao mesmo tempo, reforça o contraste entre dois mundos: o da fidelidade silenciosa (o cão, Eumeu, Penélope) e o da usurpação barulhenta (os rivais e os servos desleixados). Numa narrativa repleta de monstros e deuses, o gesto mais humano é o de um animal cansado que reconhece o amigo.

Por que Argos não é tão famoso quanto Cérbero?

Cérbero na mitologia grega.

Cérbero na mitologia grega. Foto: criação brazilgreece.

Cérbero realmente chama a nossa atenção! Ele é um cão de várias cabeças, guardando a passagem para o Hades. Argos é doméstico, frágil, real. A cultura popular costuma preferir imagens chamativas.

Por isso, o guardião do submundo circula com mais facilidade em jogos, filmes e quadrinhos. Argos, por sua vez, exige leitura e atenção. Não é personagem de ação, é símbolo de constância. Esse perfil discreto explica por que sua fama, embora sólida entre leitores da Odisseia, não é tão difundida fora dos círculos escolares.

Histórias antigas servem como ferramentas de leitura do presente. Argos lembra que vínculos se testam no tempo, e que o afeto sobrevive a estragos materiais.

Em termos práticos, a cena é uma defesa da responsabilidade cotidiana: cuidar da casa, dos animais e das pessoas quando “ninguém está olhando”. Também é um antídoto contra a pressa. O reconhecimento acontece sem palavras, sem exigências. É um encontro que respeita os limites da velhice e, ao mesmo tempo, encerra um ciclo aberto há duas décadas.

Onde encontrar essa história?

Por fim, leitores interessados podem buscar traduções da Odisseia em português, com o episódio tradicionalmente situado na parte em que Odisseu retorna ao palácio de Ítaca e conversa com Eumeu, o guarda de porcos.

Há versões em prosa e em verso, todas acessíveis ao público geral. Quem preferir materiais de apoio encontra sínteses e análises em portais culturais e acadêmicos, que situam a passagem no conjunto do poema e destacam seu papel simbólico.

Argos não enfrenta heróis nem derruba paredes. Não tem três cabeças, nem aparece em grandes batalhas. Ainda assim, atravessou séculos como referência de lealdade. Seu gesto é mínimo, sua presença é curta, mas a mensagem que deixa é imensa: a fidelidade se mede na constância.

  • Konstantinos P.

    Grego, morou na Grécia por quase toda a sua vida e em Londres por 3 anos. Trabalhou como Bar Manager, Bartender e Barista em Londres e na Grécia. Além de ter trabalhado nas melhores cozinhas e bares de Londres e da Grécia. Participou de renomados cursos na área e compartilhou o seu conhecimento com seus alunos pela Europa. Por ser apaixonado pelo seu país, encontrou por meio da escrita uma forma de compartilhar com os brasileiros o seu conhecimento sobre viagens, história, cultura, mitologia grega e culinária geral, trazendo o melhor da Grécia para vocês.

RECENTES

Sempre jovem! Veja 5 erros que fazem parecer mais velha

Sempre jovem! Veja 5 erros que fazem parecer mais velha

Idade é apenas um número e, disso, todo mundo sabe (ou deveria) saber. Mas, poucas frases massageiam tanto o ego quanto "nossa, você parece muito mais jovem". Trata-se, sobretudo, do autocuidado e, também, evitar alguns erros que fazem parecer mais velha. Venha saber...

Ímãs de geladeira podem danificar o seu aparelho?

Ímãs de geladeira podem danificar o seu aparelho?

Em muitas casas brasileiras, e também gregas, a geladeira vai muito além de um eletrodoméstico. Ela é quase um mural da vida. Nela se acumulam lembranças de viagens, fotos de família, bilhetes apressados e desenhos infantis. Cada ímã carrega uma história. Só que, por...

Você arruma a cama logo ao levantar? Veja o que isso revela sobre você

Você arruma a cama logo ao levantar? Veja o que isso revela sobre você

Arrumar a cama, ou dar um jeito na casa, assim que se levanta pode parecer algo automático, quase mecânico. Mas, segundo a psicologia, esse gesto simples fala muito sobre a maneira como encaramos o dia, lidamos com as emoções e organizamos a própria vida. Pequenos...

Curtinhos e na moda! Estes são os nomes de 3 letras que estão em alta

Curtinhos e na moda! Estes são os nomes de 3 letras que estão em alta

Os nomes simples continuam firmes nas certidões de nascimento no Brasil. Mesmo com novas tendências surgindo todos os anos, aqueles com apenas três letras seguem entre os preferidos das famílias. Dados do IBGE e da Arpen-Brasil mostram que nomes pequenos aparecem com...

Truque simples na máquina de lavar ajuda a eliminar pelos das roupas

Truque simples na máquina de lavar ajuda a eliminar pelos das roupas

Quem tem cachorro ou gato em casa sabe: manter a casa limpa é um desafio diário. E o problema não se limita ao chão ou ao sofá. As roupas, especialmente as escuras, parecem atrair cada fio de pelo que circula pelo ambiente. Mesmo depois de lavar, é comum que...

Qual é a cidade perfeita para o seu signo?

Qual é a cidade perfeita para o seu signo?

Nem todo mundo se sente totalmente à vontade no lugar onde vive. Às vezes, parece que falta algo, uma sintonia, uma vibração, uma energia que combine com quem somos. Pois bem, a astrologia acredita que isso não é coincidência. Segundo os astros, cada signo tem uma...

Esta cidade medieval é um paraíso europeu e os turistas não sabem

Esta cidade medieval é um paraíso europeu e os turistas não sabem

Logo que você pisa em Ghent, sente algo especial. O centro histórico parece ter saído de um livro antigo. Ruas de paralelepípedos, canais tranquilos, construções medievais bem preservadas, tudo isso emoldura uma cidade que guarda ecos dos séculos XII e XIII. Ghent às...

Este é o detalhe na sua casa que atrai lacraias e você não sabia

Este é o detalhe na sua casa que atrai lacraias e você não sabia

Quem já encontrou uma lacraia no banheiro sabe o susto que dá. Com o corpo comprido, achatado e cheio de pernas, esses bichos se movem rápido, aparecem do nada e causam repulsa instantânea. Apesar de serem mais comuns em regiões tropicais e úmidas, como grande parte...

O segredo de um grego para fazer o bolo de cenoura perfeito no Brasil

O segredo de um grego para fazer o bolo de cenoura perfeito no Brasil

Entre tantas delícias da confeitaria internacional, poucas receitas despertam tanta memória afetiva nos brasileiros quanto o tradicional bolo de cenoura com cobertura de chocolate. É aquele bolo que lembra infância, lanche da tarde e cheiro de casa cheia. Apesar de...

0 comentários